Socialização e consumo de álcool

Daniely Botega
5 min readOct 9, 2020

“Porque o vinho
é o espelho dos homens”

Alceu de Mitilene (c. 600 a. C.)

Pintura egípcia mostrando das parreiras ao transporte do vinho.

O consumo de álcool é um elemento participante do desenvolvimento das civilizações. O vinho chegou a ser um dos motores fundamentais da economia antiga. No livro “Drogas e Culturas” Beatriz Caiuby Labate [et al.], apresentam um apanhado de textos referentes a intrínseca relação cultural entre o consumo de drogas e as diversas sociedades, das mais antigas a atualidade. E claro, dentre elas encontramos o consumo de álcool.

Não há como negar a recorrente combinação entre confraternizações e o consumo de bebidas alcoólicas. O vinho, por exemplo, foi (e ainda é) um instrumento de sociabilidade, participando da construção das civilizações e sendo símbolo de status. Além de ser relacionado e combinado as refeições, o que torna ainda mais habitual o seu consumo no nosso cotidiano. O álcool em sua série de significados simbólicos pode apresentar-se como característica local, alimento ou ainda promover a sociabilidade.

Formas compartilhadas de alteração de consciência não são uma novidade. Sendo exploradas por diversas culturas, dos variados povos antigos que consumiam e vendiam vinho até os povos da Amazônia com o cauim. Como já dito, o consumo de bebidas alcoólicas possui um valor simbólico, e em comum há o valor da sociabilidade proporcionada que pode ser notado independente da bebida em questão. Usando um exemplo mais atual, podemos pensar nas reuniões de calouros em bares próximos às universidades. Há a integração e sociabilização entre os novos estudantes com os já veteranos tendo o álcool como facilitador.

“modo de preparar e tomar a bebida entre os [nativos] americanos no Brasil, onde as virgens — logo depois que mastigam as raízes — cospem-nas, em seguida cozinhando-as em potes e oferecendo-as aos homens para que eles bebam. Essas bebidas especiais são consideradas deliciosas entre eles” — Jodocus Hondius. (fonte: O ETNOBOTÂNICO)

Esta não é a única substância que alivia o controle social, mas talvez seja a mais difundida por ser uma droga lícita. Assim como diz a frase “in vino veritas” (no vinho está a verdade), o álcool pode nos auxiliar a nos soltar e viver uma outra persona que não seria bem recebida em outra ocasião e ambientes. Relaxamos quem costumamos ser e assumimos uma postura mais livre, algumas vezes assumindo uma outra identidade que é permitida pelo ambiente combinado ao uso coletivo do álcool.

Também não é novidade o consumo de alguma substância que altere a consciência sendo apreciada de forma ritualizada. Embora muito do caráter xamânico e religioso destes rituais tenham se perdido, as características de uso coletivo e sua relação de troca social proporcionada pelas substâncias parece permanecer e ser atualizado, não se perdendo por completo o prazer e valor da contemplação em grupo, sendo cada vez mais participante da cerimônia social. Este ritual social também inclui em sua prática as formas com que o uso é feito dentro do grupo, se este grupo é repetidamente composto pelas mesmas pessoas, e ainda se é sempre utilizada a mesma substância no mesmo ambiente.

Assim como o consumo de álcool nos remete a momentos de festa e prazer, ele também é associado ao mundano e o mal moral. O uso social de bebidas alcoólicas tem em seu protocolo que esta não cause mal estar, tanto no momento de consumo quanto na falta dela. A alteração de consciência deve ser apenas como uma visita, sem permanência por tempo prolongado.

Os Bêbados — José Malhoa (1907)

O consumo de bebidas alcoólicas junto a um grupo chega a ser tão forte para alguns que estes só conseguem beber quando estão acompanhados. Quem não ouviu falar nos amigos de bar, pessoas que acabam se conhecendo e sempre se reencontrando no mesmo bar. O que Eduardo Zanella em seu artigo “Não dá para sair do morro: pertencimento e sociabilidade no consumo de bebidas alcoólicas em um bar popular de Porto Alegre”, compara a relação de pertencimento do sujeito. Um dos entrevistados para o artigo afirma com orgulho que ganhou várias garrafas de bebida e as guardou em casa, mas não fez uso de nenhuma, pois só bebe quando está no bar.

Este escape social é aceitável até um limite: o porre. Não há vergonha ao se ficar de porre em momentos apropriados, como acontece no ritual indígena de Turé. Estes acreditam que o momento de porre é, e deve, ser vivido durante o Turé, e quando ele acontece fora desta circunstância há uma outra visão sobre o embriagar-se demais, se tornando um comportamento impróprio.

“A prática social de beber está, então, inserida em um conjunto de valores, representações e organizações sociais, e estas, por sua vez, nunca são as únicas possíveis: cada sociedade, grupo ou cultura elabora momentos, bebidas e lugares propícios para sua realização (Neves, 2003).”

O consumo de álcool e seus diversos valores simbólicos no desenvolvimento do homem e a sua relação social coloca o embriagar-se como um fenômeno cultural. Por ser tão socialmente praticada, a abstinência por álcool se torna uma tarefa muito difícil. As chamadas recaídas e internações sucessivas são comuns. O sujeito acaba sendo excluído por não saber apreciar dentro limite social o seu prazer num estado alterado de consciência. Há uma linha tênue e muito difícil de se observar entre o beber social e o beber nocivo. E nos faz perguntar quem então poderia ser chamado de “alcoólatra”, aquele que religiosamente toma uma taça de vinho todas as noites, ou o que toma um porre todo final de semana no seu dia de folga.

O consumo de bebidas alcoólicas e o seu uso social pode nos auxiliar a relaxar, nos divertir, proporcionar prazer e incluir socialmente, desinibindo e aproximando pessoas. Ao mesmo tempo que pode gerar exclusão quando se transgride as leis sociais atreladas ao seu consumo. Significar o que é a dependência de álcool é subjetivo, cada um possui o sua forma de avaliar a forma certa de beber e o contexto em que este uso ocorre. Podemos perceber como este possui diferentes usos em seus diferentes contextos, além dos seus diversos significados, mas em comum encontramos o consumo de álcool como um elo social de diversas civilizações em variados períodos históricos.

Em uma Osteria Romana — Carl Bloch (1866)

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